terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

O piano mal-assombrado

(Especialmente pra você, Valmir)

 
Até os meus 16 anos, morei em várias cidades do Nordeste, onde adquiri, pela força da cultura local e infantilidade mesmo, um terrível medo de "alma"!
(Guarde essa informação pra mais tarde)

Aos 7 anos de idade, em Caruaru-PE, comecei a estudar piano no Instituto Musical Villa Lobos, da inesquecível professora Lourdinha Andrade Troueira. (Adorava esse sobrenome, com todas as vogais juntas!) Nunca me esqueci de sua doçura e o quanto ela me incentivou!

Bem, como eu não tinha piano em casa, tinha que agendar um horário lá na escola, quando tivesse algum piano sem uso, pra estudar minhas peças.
No início isso era muito natural, afinal, ninguém sabia se aquele meu interesse por música ía vingar, né? Mas com o passar do tempo, talvez 1 ano depois, toda a família, vendo o meu progresso musical, percebeu que a necessidade de eu ter um piano pra chamar de meu, gritava!

Foi quando minha mãe saiu em campo pra escolher um piano pra mim. Rodou a cidade fazendo orçamentos,  lia classificados, perguntava, pedia orientação a quem já tinha piano, pedia oração na igreja, até que, finalmente, achou um piano dos sonhos (dela, diga-se de passagem!): madeira escura, 0 km, compacto, "piano de apartamento", um Essenfelder maravilhoso, parecido com esse tchutchuco aí:


Preço do mimo: 15 mil cruzeiros (cruzados, réis, contos de réis... sei lá qual era a moeda daqueles longínquos 1975?!)

Mamãe, sempre dinâmica, do tipo "gente que faz", arregaçou as mangas e, junto com meu pai, trabalhou arduamente pra juntar essa pequena fortuna.

Conseguiram! Que felicidade! 
Em 1976, 77, do alto dos meus 9, 10 anos de idade, ostentava toda a alegria e orgulho de ganhar um presente sem igual!

Meus pais, com a grana na mão, combinaram com o vendedor da loja que comprariam meu piano na volta de uma pequena viagem que faríamos em família. 
Beleza!

Nesse fim de semana, no interior onde estávamos, recebemos a triste notícia que a filha de D. Beatriz, uma amiga da nossa igreja, havia cometido suicídio!
Que choque! Que horror!
Foi uma comoção generalizada!

A linda moça, de 20 e poucos anos, estudava em Salvador e, desesperada com o fim do seu noivado, tinha ido pra Caruaru, passar aquelas férias de julho na casa da mãe, D. Beatriz, tentando achar, junto aos seus, conforto pra sua dor.
Num belo domingo, parecendo estar mais tranquila, a jovem saiu de casa dizendo que ía almoçar na casa de uma tia e, por volta do meio-dia, desceu o barranco pra se deitar na linha do trem e, com a cabeça no trilho, o trem deu fim à sua vida!

Aquilo era tão surreal pros adultos, que dirá pra uma menina de 9 anos! 

Eu me lembro que isso foi assunto em todas as rodas, durante muito, muito tempo! 
Ninguém escapava  ileso de tamanha tragédia!
A imaginação das crianças voava insanamente, sem nenhuma lógica e sem nenhum freio!

Meus pais deram muita assistência àquela pobre família enlutada, ao ponto de suspenderem todo e qualquer outro afazer, inclusive a compra do meu piano.
Eis que passados alguns dias, D. Beatriz chama a minha mãe para uma conversa muito séria: começou relatando que ela estava se desfazendo de tudo o que pertencia à sua amada filha, pois aquilo lhe causava enorme sofrimento! Até aí, tudo bem; mais do que compreensível, né?
Pois bem, sabendo que minha mãe estava prestes a comprar um piano pra mim, ofereceu... digo, pediu... digo, suplicou... digo, IMPLOROU pra que minha mãe comprasse o piano de sua falecida filha, pois ela não suportava olhar pr'aquele instrumento tão precioso e lembrar de como sua filha era uma exímia pianista!

Ó CÉUS!

O piano da filha de D. Beatriz era semi-novo, madeira clara, robusto, parecido com esse da foto...

 
...e o valor que ela pediu foi de 8 mil!

Ó CÉUS! 

Minha mãe, extremamente comovida com a situação, nem me perguntou o que eu achava! Já chegou me comunicando que ía comprar o piano de D. Beatriz, para o meu desespero!

Efetuado o negócio, recebemos em casa o "novo membro da família". Era um piano Meister excelente, sonzão, era meu, um privilégio, MAAAAAAS... EU MORRIA DE MEDO DELE!

Se estivesse sozinha, nunca tocava nele à noite e passei anos e anos sem conseguir abrir a tampa dele, pois achava que a "alma" da antiga dona estava lá dentro!
Ô pesadelo!

Com o tempo e o amadurecimento, obviamente, todas essas coisas ficaram pra trás e eu pude tirar todo o proveito do meu piano, que me acompanhou por uns 25 anos!

Eu só me desfiz dele porque, com tantas mudanças no meu curriculum, ele foi ficando todo arregaçado, madeira abrindo, afinação caindo, (o ideal é que o piano não saia do  seu lugar), mas devo dizer que tenho muita saudade daquele sonoro móvel imóvel na minha sala, mesmo com toda a  tragi-cômica lembrança de "mal-assombramento" que ele me traz!



11 comentários:

  1. Mas que honra ter um post dedicado a mim. É a primeira vez na história deste país no blog da Kátia! Uhu! Bem, adorei a história. Isso daria um curta ótimo. Ah, se eu fosse cineasta. Já vejo o piano tocando sozinho na minha frente, com vultos dançando ao seu redor... bjos

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  2. HAHAHAHAHAHAHAH!!!!!!!! Essa é boa!

    Então quer dizer que se vc fosse cineasta faria cinema trash com o Zé do Caixão, né?
    E não adianta nem dizer o contrário, pque eu já vi foto sua com ele no Sobretudo, tá?

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  3. Beleza de história, na minha meninice pensava: se eu for aprender algum instrumento será o piano, mas a meninice se foi e nem piano na minha frente eu vi, obrigado pela visita e pelas palavras grande Katiadorada, volte sempre. Abraço e sucesso.

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  4. Ó Dio mio, ADOREI o "Katiadorada"!
    Uh-huuuuuuuuu!!!!!!!
    :)
    Valeu demais, Pastorelli!

    Mas eu posso falar uma coisa? Se, além de poeta, exímio desenhista, vc ainda fosse um pianista... vou te contar! Nâo ía sobrar nada pra ninguém!
    heheheheh

    Bjão, querido.

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  5. Nossa, do nada achei seu blog por aí na internet, e adorei seus posts.
    Virei fã, e passarei aqui todo dia pra procura novidades. E indicarei para outras pessoas também.
    Até a próxima.
    Abraços, Amanda Pereira

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  6. Amanda! Que palavras amáveis!
    :)
    Muito obrigada e muito prazer te "conhecer", ainda que virtualmente!

    Volta mais aí, que vou adorar trocar ideias com vc tbém, tá?
    Fique sempre à vontade.
    Bjão.

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  7. sabe que eu me lembro desta historia do suicidio . se nao me engano ela cantava em um conjunto ou coral que um fim de semana antes tinha ido em Barra de >Guabiraba cantar na igreja. sera a mesma???

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  8. Elisabete do céu, só pode ser a mesma, pque eu não posso acreditar que aconteceram dois casos iguais! Afe!

    Bom te receber aqui, viu?
    :)
    Apareça sempre.
    Bjão.

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  9. Que história mais incrível Kátia! Adorei seu estilo literário, bem solto, informal e interessante. Como disse um dos comentadores, essa enredo daria um filme.
    Depois de um hiato sem entrar na esfera blogueira, volto à tona e encontro sua sensibilidade, bem à moda Fagundes Soares Rocha. Parabéns pelo blog e continue fabricando pérolas, assim o nosso dia a dia virtual tem mais encanto. bjs

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  10. Queilinha!!!!! Que honra te receber aqui!
    :)
    Surpresa boa demais, viu?
    Apareça sempre!

    E eu espero que vc esteja bem.
    Bjão grandão.

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  11. Ehhhhh Kátia, continua com essa sua mania maravilhosa de escrever bem! Seus textos são primorosos, você é uma cronista de primeira! Talvez você nem tenha a exata noção do tamanho do dom que você tem, mas saiba que é um dom e um baita dom! E o mais bacana, você tem estilo próprio! Eu reconheceria um texto seu, mesmo sem saber que é seu! Fantástica essa crônica do piano, digna de um livro! Abração!

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